Em
sua coluna na Vanity Fair, o
recentemente falecido Christopher Hitchens adorava comentar sobre algum aspecto
bem detestável da vida cristã nos dias de hoje – geralmente alguma excentricidade
americana, como o governador do Texas, Rick Perry, ter dirigido uma oração pedindo
por chuva – para, em seguida, pulverizar veneno sobre toda possível crença em
Deus, em todo lugar e em qualquer época.
Essa
prática argumentativa se chama indução,
e faz com que o leitor se familiarize com situações absurdas (porém, muito específicas)
para em seguida induzir sua compreensão particular sobre uma realidade muito
maior, da qual não podemos (humanamente) entender na sua totalidade. Esse tipo
de prática é desaconselhável em se tratando de filosofia, mas é um recurso
amplamente usado no campo no jornalismo. Não é mentir, mas também não é dizer a
verdade.
Hitchens
deixou seguidores. Em artigo
na revista Época (15.11.2011), a jornalista Eliane Brum usou e abusou desse
recurso ao usar uma situação real para explicitar o que seria dos ateus em um
Brasil com a presença cada vez maior dos evangélicos, cada um (imagina-se)
esforçando-se para dizer a todos que quem não aceitar Jesus, não será salvo.
Segundo
ela, o taxista evangélico que ousou convidar uma jornalista ateia para visitar
uma igreja foi “doutrinado” para acreditar que um ateu é uma espécie de
Satanás. Logo, ele não resolveu falar sobre Jesus por uma inclinação pessoal, mas
porque a religião o tinha transformado em um ser intolerante – da mesma forma
como os ‘carecas do ABC’ infundem atributos pessoais conforme a cor da pele,
origem regional ou forma de relação sexual. Em busca de uma explicação melhor,
a autora do artigo foi até ao site da igreja dele e saiu apavorada com uma
mensagem intitulada ‘O perigo da
tolerância’. Estava aí a senha que pode tornar, no futuro, um jovem taxista
animado em um perigoso terrorista cristão potencial.
A
mensagem indireta é muito clara: “– Você está errado em não ficar preocupado
aí. Faça alguma coisa”. Os argumentistas dessa categoria costumam colecionar
pequenas notícias (ou, na falta delas, situações sem nenhuma importância
prática) para construir conceitos concordantes com sua visão pessoal a serem compartilhados
da forma mais sutil possível com os que ainda não têm conceito algum. Sites ateístas
que relacionam crimes e falcatruas cometidas por pastores... sites evangélicos
que listam escândalos de pedofilia (mas somente os cometidos dentro da Igreja
católica)... sites católicos que listam dezenas de igrejas protestantes e seus
fundadores (mas nenhum deles é Pedro)... A indução é muito utilizada. Não é
ética, mas geralmente funciona.
Contudo,
se podemos concordar na necessidade de respeito para a convivência mútua dentro
de uma sociedade “cordial”, temos, por outro lado, que admitir que essa
convivência requer, no mínimo, o respeito a requisitos da ética, entre os quais
se encontra a obrigação de falar dos fatos como realmente são.
Qualquer
leitor devidamente alfabetizado poderá conferir que a mensagem não trata da
relação com outras pessoas e/ou religiões, mas à forma de cada um lidar com seus
próprios vícios ou os que existem dentro de sua família - e, antes que a
criatividade queira determinar que vícios são esses, os citados foram a
perdulariedade financeira, a insubordinação aos pais e a pornografia, ou seja,
situações em que não é preciso crer em Deus para se tomar alguma providência
séria para evitá-las.
Se
antes falávamos em sutilezas filosóficas da argumentação, agora não vemos
sutileza alguma. Destacar uma frase e direcioná-la a um contexto que não
corresponde ao sentido da mensagem sobre a tolerância não é algo que se espera
da mais elementar ética, seja no jornalismo, seja na vida cotidiano. Isso não é
fazer o bem. Não é ser honesto.
Por
outro lado, o artigo me fez lembrar outras situações presentes, até mesmo em
minha vida pessoal. Temos que admitir que a jornalista passou por uma situação “leve”,
sem constrangimentos. Ela não deve ter perdido o sono naquela noite, e não teve
nenhum desconforto a não ser conversar com um desconhecido em uma perspectiva
que definitivamente não era a dela.
Pois
na mesma data em que era publicado o artigo, conversei com um cidadão que não gostou
que se falasse em igreja, gritou dizendo que odiava Deus, e que Jesus era ainda
pior. Esse, porém, não quis mudar de assunto, começou a me ofender em via
pública, me chamando de 'fascista' e acabou por esmurrar a frente do meu carro.
A jornalista devia se sentir contente por apenas um sorriso nervoso.
Observem.
Eu não vim aqui me queixar dizendo que ateus são esbravejadores intolerantes e
que agridem as pessoas. São comportamentos individuais. Exatamente como o do
taxista e da jornalista. Há comportamentos tanto intolerantes quanto tolerantes
entre evangélicos, ateus, umbandistas, católicos ou islâmicos. Qualquer um pode
ter a opinião que quiser sobre esses grupos, mas não é nada correto abstrair um
comportamento geral a partir de atitudes pessoais. Essa, basicamente, é a
essência do racismo.
Não
presumam que o crente nunca saiba o que é agnóstico ou seus correlatos, ou que
seja um analfabeto funcional disposto a tirar do casaco uma Bíblia e tacar na
sua cabeça.
Não
é nada sensato, como também me ocorreu há poucos dias, que um ateu tenha
insistido comigo que cremos em todas as histórias registradas na Bíblia
exatamente como estão lá – o que nem os teólogos mais conservadores admitem. Os
crentes sabem que algumas leituras são temporais e que não devem ser
compreendidas como manuais científicos. Assim como extrapola a qualquer
racionalidade que um outro tenha vindo a exigir a aprovação do PL122 contra os
'hipócritas' e 'fanáticos', para acabar com o preconceito, quando justamente o
preconceituoso era ele.
Se
alguém realmente está preocupado com atitudes intolerantes, o mínimo que se
espera desse alguém é que compreenda as diferenças de opinião, e que não venha
a estimular opiniões intolerantes ou carregadas de preconceitos ao induzir que
apenas um grupo (e somente ele) é o instigador de violências imaginárias.
Nós,
crentes, temos bem maior conhecimento e sensatez do que o meio comum admite que
tenhamos. Só ainda não temos espaços para demonstrar isso.